segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Direito à saúde: a entrega de medicamentos e o direito coletivo

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 2. A PRESTAÇÃO DO TRATAMENTO MÉDICO 3. PROBLEMAS DECORRENTES DO EXCESSO DA JUDICIALIZAÇÃO DE DEMANDAS 3.1 Direito individual versus Direito Coletivo 3.2 Limitação financeira 3.3 Capacidade técnica do magistrado 4. CONCLUSÃO. REFERENCIAS



Resumo

O presente trabalho tem por fim, basicamente, responder aos seguintes questionamentos: qual o limite da atuação do Poder Judiciário exigindo a prestação dos serviços de saúde? A segunda pergunta é qual a tolerância do prejuízo para a coletividade, uma vez que se garanta um tratamento extremamente caro para uma pessoa doente, já que nem todos, com a mesma doença ou com tantas outras, terão seu atendimento garantido por falta de dinheiro público para atender aos demais? Por fim, o último é se seria o Poder Judiciário o mais capacitado para decidir quem deva ou não receber determinado tratamento, já que os magistrados não detêm, em regra, capacidade técnica para verificar as chances de o paciente ficar curado ou ao menos sobreviver após o procedimento médico de alto custo. A relevância do estudo está no fato de que estes questionamentos vêm sendo levantados pelos administrados e administradores públicos. A pesquisa feita deu-se por meio de bibliografia especializada e análise jurisprudencial. A resposta aos questionamentos realizados é pela possibilidade de controle jurisdicional, desde que observe requisitos como limitar-se a medicamentos e tratamentos oferecidos pelo SUS, com eficácia já devidamente comprovada. Além disto, apesar de não serem os magistrados os mais capacitados na análise do caso concreto, devem agir sempre que as políticas públicas forem deficientes, sendo suas decisões baseadas em pareceres de peritos de sua inteira confiança.

Palavras-chave Direito Público. Saúde. Decisões Judiciais.


1 INTRODUÇÃO

Este estudo tem a finalidade de observar e tecer comentários sobre o direito constitucionalmente previsto a saúde que se consubstancia através da prestação de serviços médicos (em toda sua extensão) e da entrega de medicamentos.
Sabendo-se que este é dever de competência do Poder Executivo ao implementar políticas públicas adequadas, deseja-se verificar a possibilidade de, em caso de omissão ou de não cumprimento satisfatório, haver, por parte do Poder Judiciário, a garantia da execução de tal direito dos administrados e dever da Administração Pública.
Há que se ressaltar que, por diversas razões, tem que existir limitação na atuação do Poder Judiciário para tal garantia, sob pena de haver usurpação das funções dos Poderes Executivo e Legislativo.
Assim, há três questionamentos a serem feitos na tentativa de respondê-los da maneira mais satisfatória possível: qual o limite da atuação do Poder Judiciário exigindo a prestação dos serviços de saúde? A outra pergunta a ser feita é como um magistrado deve proceder ao se deparar com uma ação para fornecer determinado tratamento ou medicamento, uma vez que se garanta um tratamento extremamente caro para uma pessoa doente, já que nem todos, com a mesma doença ou com tantas outras, terão seu atendimento garantido por falta de dinheiro público para atender aos demais? Por fim, o último ponto é observar se seria o Poder Judiciário o mais capacitado para decidir quem deva ou não receber determinado tratamento, já que os magistrados não detêm, em regra, capacidade técnica para verificar as chances de o paciente ficar curado, ou ao menos, sobreviver após o procedimento médico de alto custo.
A partir destes questionamentos a primeira seção do trabalho explorará uma perspectiva histórica quanto aos direitos à saúde e a progressão do entendimento do Poder Judiciário quanto à intervenção em tais temas. A segunda seção avaliará os problemas do excesso da judicialização em busca da resposta aos questionamentos acima apresentados.
Por estes motivos é de grande relevância este estudo, já que poderia responder a questionamentos que começam a ser levantados por aqueles que gerem a Administração Pública e pelos próprios administrados.
Este trabalho será realizado através de pesquisa bibliográfica, em especial a livros de direito constitucional, artigos específicos sobre o tema e jurisprudência pátria. Tal tipo de pesquisa mostra-se mais adequada por ser a que abrange uma perspectiva mais completa no exame dos problemas e possíveis soluções.
Importante ressaltar que não há uma resposta pronta e simples, mas uma necessidade de observação e ponderação dos direitos e princípios envolvidos. Da mesma forma, alcançando uma resposta ela não será suficiente e bastante para todos os casos, necessitando que seja reavaliada caso a caso.

A PRESTAÇÃO DO TRATAMENTO MÉDICO

Para que se possa compreender melhor a atuação do Poder Judiciário em ações relativas ao direito à saúde faz-se necessário apresentar uma perspectiva histórica, desde seu surgimento e o desenvolvimento no decorrer dos séculos.
O direito à saúde é um direito fundamental que se enquadra dentro do grupo de direito social. A noção de direitos humanos, inicialmente, surgiu na Revolução Francesa em sua primeira dimensão, que se apresenta como direitos provenientes da abstenção estatal, como exemplo o direito de ir e vir. Posteriormente, no século XX, surgiu a segunda dimensão desses direitos que se evidencia com os direitos sociais, culturais e econômicos.
A Constituição, ao longo do tempo, teve seu conceito revisto diversas vezes. No início, era apenas um documento que refletia as relações sociais que constituem o poder. Algum tempo depois, com a tese concretista de Konrad Hesse, passou a ser dotada de força normativa, isto é, foi possível que seu texto fosse aplicável ao caso concreto, passando a gerar efeitos. A partir daí, começou-se a discutir a eficácia jurídica das normas constitucionais. Segundo a clássica classificação de José Afonso da Silva, a eficácia das normas jurídicas seria dividida em plena, contida ou limitada. Sendo esta última a que tem relevância para o estudo em questão.
Este tipo de norma teria aplicabilidade diferida, pois sua eficácia dependeria de prévia regulamentação em legislação infraconstitucional pelo legislador ordinário, estando este, até a edição da lei, apenas vinculado a não ferir o comando dado pela norma constitucional, sem que ninguém pudesse exigir o cumprimento desta sem a publicação da referida lei, por apenas apontar a direção a ser seguida. Luís Roberto Barroso chama a norma limitada de programática, ou seja, aquela que institui programas e fins ainda não alcançados, mas a serem atingidos.
Virgilio Afonso da Silva, em sua tese de doutorado, questionou a classificação de seu pai afirmando que todas as normas constitucionais tem aplicabilidade imediata em maior ou menor grau. Hodiernamente, este entendimento foi acatado e entende-se que as normas programáticas são passíveis de gerar direito subjetivo e até direito fundamental subjetivo, como o direito a saúde.

As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como integrantes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente, os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular, converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportando tutela judicial específica. A intervenção do Poder Judiciário, mediante determinações à Administração Pública para que forneça gratuitamente medicamentos em uma variedade de hipóteses, procura realizar a promessa constitucional de prestação universalizada do serviço de saúde.

Aqui, está consubstanciado o princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, também conhecido como direito de ação ou princípio da ubiquidade da Justiça, que nada mais é do que o dever da prestação jurisdicional sempre que lhe for apresentada causa sobre a qual deva se manifestar pela existência ou não de direitos, sem que se possa alegar lacuna legal para não julgar. Nestes casos a lide deverá ser decidida pelo julgador com base nos costumes, analogia e princípios gerais do direito.
Há que se ressaltar que durante um longo período de tempo o Poder Judiciário, por entender que não deveria interferir em esfera alheia de poder, apenas se abstinha de julgar causas em que se reclamava omissão da Administração, seguindo o entendimento de José Afonso da Silva.

PRESERVACAO DA VIDA FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO MEDIDA CAUTELAR INOMINADA Medida cautelar inominada destinada ao fornecimento de remedio de alto custo indispensavel para a sobrevivencia de pessoa com deficiencia renal. Dada a carencia de recursos nao pode o Estado privilegiar um doente em detrimento de centenas de outros, tambem carentes, que se conformam com as deficiencias do aparelho estatal. Nao pode o Poder Judiciario, a pretexto de amparar a autora, imiscuir-se na politica de administracao publica destinada ao atendimento da populacao. Manutencao da sentenca. (DP) Vencido o Des. Hudson Bastos Lourenco.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante a todos, brasileiros, natos ou não, e até a estrangeiros, ainda que de passagem pelo território nacional, o direito a saúde. Todavia há grande dificuldade em realizar este direito de modo satisfatório por meio de políticas públicas.

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.


Ressalta-se que por muito tempo o direito a saúde não era direito de todos. Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, no século XIX, as questões de saúde se restringiam a controle sanitário nos portos e poucas tentativas de combater a lepra e as pestes.
Muito tempo depois começou efetivamente a prestação de serviços a saúde, em especial contra a febre amarela, vindo então a criar o Ministério da Educação e Saúde Pública. Neste momento o direito a saúde era restrito apenas aos trabalhadores que contribuíam para a previdência social. Como grande parte dos trabalhadores da época não estava no mercado de trabalho formal, não contribuíam para a previdência social, não tendo então o direito aos serviços de saúde. Somente com a nova Constituição, publicada em 1988, que o direito a saúde foi universalizado.
Importante destacar que nos demais países o direito à saúde é restrito aos nacionais ou, no máximo, aos residentes que contribuem por meio de seus tributos. Desta forma os estrangeiros para ingressar nestes países têm que pagar um plano de saúde pelo período que pretendem permanecer no país. Tal fato é relevante por ressaltar a maior dificuldade de se cumprir o direito à saúde no Brasil.
Visto ser a República Federativa do Brasil constituída por três Poderes independentes e harmônicos entre si, e como tal, há repartição das competências, de forma que todos os Poderes possam agir garantindo a fiel execução dos mandamentos constitucionais. Por isso é plenamente cabível a discussão sobre a possibilidade de o Poder Judiciário garantir um direito previsto constitucionalmente, cuja competência não seja sua. Por estes motivos é mister a identificação dos posicionamentos judiciais, até este momento, em especial das Cortes Superiores e observá-los a luz da democracia.
O entendimento do Superior Tribunal de Justiça no século XX era no sentido de que o direito a saúde era uma norma programática, quase uma expectativa de direito não podendo haver ajuizamento de ações neste sentido, exatamente o mesmo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

O Superior Tribunal de Justiça deixou julgado que as normas constitucionais meramente programáticas – por exemplo, o direito à saúde – protegem um interesse geral. Todavia, não confere aos beneficiários desse interesse o poder de exigir a sua satisfação, pela via do mandado de segurança, posto que não delimitado o seu objeto, nem visada à sua extensão, antes que o legislador exerça seu múnus de completá-la por meio de legislação integrativa. Essas normas (como os arts. 195, 196, 204 e 227) são de eficácia limitada, ou, em outras palavras não tem força suficiente para desenvolver-se integralmente (ROMS 6564, de 23/5/1996).

A posteriori, o Supremo Tribunal Federal se manifestou em caso semelhante de forma contrária visando garantir o cumprimento da norma constitucional.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas que visem a garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado (RE 267612, de 23/8/2000).

Outro aspecto de grande relevância que pode ser considerado o principal motivo pelo qual o Poder Judiciário tem se manifestado no sentido de atuar garantindo os direitos à saúde é a mudança do sistema axiológico do direito, visto que a família e o patrimônio deixaram de ser o centro do sistema jurídico para ser a dignidade da pessoa humana, tema de grande expressão.
A dignidade da pessoa humana é um conceito jurídico que, apesar de diversas definições e debates quanto ao conceito adequado, pode ser entendido como valor moral, de estatura constitucional, que visa garantir o mínimo indispensável para que o ser humano viva com dignidade, é a garantia dos direitos mais básicos e fundamentais que alguém pode ter.
O Poder Judiciário por dar grande valor ao princípio da dignidade da pessoa humana passou da falta de efetividade a judicialização excessiva.

O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade –, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas.
(...)
Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar à não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da cidadania, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.

Como bem diz o texto, a judicialização de demandas deixou de ser benéfica por garantir direitos não cumpridos para atrapalhar a execução deles por meio de políticas públicas.
Outro motivo pelo qual é possível ajuizar ação para garantir esse direito é o principio da vedação ao retrocesso. Este princípio, também conhecido como proibição de contrarrevolução social ou evolução reacionária, diz que uma vez estabelecida no sistema jurídico a positividade de um determinado direito fundamental e tendo o Estado implementado medidas concretas no sentido de tornar efetivo o direito consagrado, não poderia o mesmo ser suprimido ou restringido nas elaborações legislativas e interpretativas posteriores.
Todavia é possível, por exemplo, que o administrador público entenda que determinado tratamento não seja prioritário e diminuir sua oferta aumentando outra que entenda ser mais importante. O que é inviável é extinguir a prestação do serviço que entende não ser o mais importante ou reduzir sua oferta sem que ofereça outro serviço.
Como não é possível satisfazer imediatamente a necessidades de todos, muitos ingressam com ações no Poder Judiciário requisitando que este solucione seus problemas, seja obrigando os entes federativos a entregar medicamentos, seja na obrigação de fazer procedimentos médicos. O que não é observado pelo homem médio, é que quando o Poder Judiciário toma decisão de intervir na saúde pública está usurpando, em parte, a função do Poder Executivo. A denominação dada para o princípio que possibilita o controle externo é principio de freios e contrapesos.

A primeira e mais freqüente crítica oposta à jurisprudência brasileira se apóia na circunstância de a norma constitucional aplicável estar positivada na forma de norma programática. O artigo 196 da Constituição Federal deixa claro que a garantia do direito à saúde se dará por meio de políticas sociais e econômicas, não através de decisões judiciais. A possibilidade de o Poder Judiciário concretizar, independentemente de mediação legislativa, o direito à saúde encontra forte obstáculo no modo de positivação do artigo 196, que claramente defere a tarefa aos órgãos executores de políticas públicas.
(...)
Uma outra vertente crítica enfatiza a impropriedade de se conceber o problema como de mera interpretação de preceitos da Constituição. Atribuir-se ou não ao Judiciário a prerrogativa de aplicar de maneira direta e imediata o preceito que positiva o direito à saúde seria, antes, um problema de desenho institucional. Há diversas possibilidades de desenho institucional nesse domínio. Pode-se entender que a melhor forma de otimizar a eficiência dos gastos públicos com saúde é conferir a competência para tomar decisões nesse campo ao Poder Executivo, que possui visão global tanto dos recursos disponíveis quanto das necessidades a serem supridas. Esta teria sido a opção do constituinte originário, ao determinar que o direito à saúde fosse garantido através de políticas sociais e econômicas. As decisões judiciais que determinam a entrega gratuita de medicamentos pelo Poder Público levariam, portanto, à alteração do arranjo institucional concebido pela Constituição de 1988.


De acordo com Magdalena Sepúlveda, relatora especial da ONU, o acesso à Justiça das pessoas realmente pobres, que beiram a miséria, é quase nulo, por causa de diversos fatores, sejam estes financeiros, sociais ou físicos. Muitas vezes faltam condições financeiras ou tempo de chegar a um tribunal distante, em outras “a falta de informação sobre os seus direitos, o analfabetismo ou as barreiras linguísticas, juntamente com o estigma enraizado ligado à pobreza, também tornam mais difícil para os pobres se envolver com o sistema de justiça”.

Neste contexto, se levarmos em consideração o fato de que, diante da escassez, as decisões explicitamente alocativas de recursos são implicitamente desalocativas, o foco centrado nas ações individuais pode acabar funcionando como uma espécie de “Robin Wood às avessas”, ao sugar recursos de politicas públicas que atingiriam os mais pobres para transferí-los para a classe média. Enquanto isso, graves violações de direitos perpetradas contra os mais carentes ficam sem resposta judicial.

Conforme o texto, para esse tipo de pessoa, que sequer tem acesso à Justiça, se for privado das políticas públicas mais básicas inevitavelmente uma doença, ainda que das mais comuns, poderá causar sua morte.
A partir dos fatos e fundamentos expostos pode-se compreender melhor a evolução dos julgados e seus motivos. Há que se ressaltar que o fato de o Supremo Tribunal Federal, enquanto corte constitucional, ter se manifestado no sentido de garantir os direitos daqueles que propõe ações para viabilizar a execução de direitos constitucionalmente previstos foi essencial para que os demais órgãos do Poder Judiciário nacional seguissem este paradigma, alterando assim os rumos da jurisprudência.
Importante destacar que a mudança de entendimento por parte dos julgadores surgiu a partir dos anseios da sociedade que aguardava estas mudanças. Basicamente é possível dizer que os rumos da jurisprudência são ditados pela transmutação da mentalidade da população, sendo o juiz mero instrumento para a convergência dos pontos de vista com os resultados dos processos.


PROBLEMAS DECORRENTES DO EXCESSO DA JUDICIALIZAÇÃO DE DEMANDAS

Conforme foi afirmado anteriormente, pela impossibilidade de garantir a todos imediata e eficientemente os serviços na área de saúde há muitas ações na tentativa de resolver o problema para muitos indivíduos o que inegavelmente deve gerar um excesso na judicialização de demandas e, consequentemente, problemas.
A partir do momento em que se aceita a possibilidade de o Poder Judiciário exigir da Administração Pública o cumprimento de serviços médicos há que se observar os problemas que ocorrem.
Há três pontos a serem discutidos sobre a judicialização excessiva, o primeiro seria que se estaria garantindo o direito de um indivíduo sobre toda uma coletividade; o segundo, a limitação financeira para garantir tratamento igualitário a todos e o terceiro, a capacidade técnica do magistrado decidir quem será o beneficiário do direito a saúde.

3.1 Direito individual versus Direito Coletivo

Conforme foi dito anteriormente, por vezes ao garantir o direito de um indivíduo estão sendo preteridos os direitos de tantos outros a tratamento igualitário. A partir do momento em que uma parte do orçamento do ente federativo está destinado para tratamentos de saúde, ao haver uma decisão judicial nesta área a ser cumprida, o dinheiro utilizado será aquele anteriormente já destinado a saúde, todavia tal quantia deixará de ser utilizada para adquirir determinado medicamento ou oferecer algum tratamento.
O magistrado, quando de sua atuação, tem que se limitar ao caso concreto que lhe é apresentado. Desta forma sua atuação fica restrita a micro-justiça. Já o administrador publico, como está diante de um caso abstrato atua na macro-justiça na medida em que sua atuação não tem um destinatário pré-determinado.

Em segundo lugar, é comum a afirmação de que, preocupado com a solução dos casos concretos – o que se poderia denominar de micro-justiça –, o juiz fatalmente ignora outras necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justiça. Ora, na esfera coletiva ou abstrata examina-se a alocação de recursos ou a definição de prioridades em caráter geral, de modo que a discussão será prévia ao eventual embate pontual entre micro e macro-justiças.

Esta diferença é relevante, pois inegavelmente haverá mais imparcialidade por parte do administrador publico do que por parte do magistrado que, mesmo tentando ser imparcial, dificilmente deixará de se envolver com o caso, deixando suas emoções transparecerem em sua decisão.

Nas ações individuais, o raciocínio judicial deveria ser o mesmo. Contudo, aqui é muito mais fácil para o juiz “tapar o sol com a peneira”, e conceder “com o coração” qualquer prestação demandada, já que os efeitos concretos de cada decisão sobre o orçamento público costumam ser diminutos e existe todo um apelo emocional que inclina os magistrados a decidirem com maior generosidade em favor das pessoas concretas, de carne e osso, cujas carências e necessidades foram explicitadas no processo. Assim, muitas vezes o Judiciário acaba assegurando direitos que, diante dos recursos disponíveis e da existência de outras necessidades igualmente importantes, não teriam como ser universalizados.

Se o entendimento permanecesse estático ao que se tinha há alguns anos, vigoraria o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, tolhendo, assim, o direito do indivíduo de conseguir a prevalência de seus direitos que conflitassem com direitos coletivos. Ocorre que este princípio vem sendo sobreposto pelo princípio da proporcionalidade, fazendo com que se ponderem os direitos em conflito para ver qual deve prevalecer.
No princípio da proporcionalidade, há uma adequação ao meio escolhido para atingir o fim destinado, há a escolha do meio necessário que seja o menos gravoso para os bens tutelados, e existe a proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, deve trazer mais benefícios do que prejuízos. Isto significa que a medida escolhida deve ser aquela que é a que alcançará o objetivo, violar a liberdade individual apenas o estritamente necessário, e a ausência de excessos nas medidas restritivas.
Tal mudança de entendimento se deve a percepção que se passou a ter que ambos direitos, tanto os individuais quanto os coletivos, são previstos e garantidos constitucionalmente.

A abordagem abreviada do autor a respeito do que vai chamar de "indissociabilidade" entre os interesses públicos e privados merece, pela relevância, maiores reflexões. Tal indissociabilidade decorre não apenas da existência de um ordenamento jurídico pautado por garantias e direitos individuais aos quais o Estado deve reverência e proteção; a assertiva vai além, traduzindo a idéia de que a realização de interesses privados (reconhecidos pela Constituição como direitos fundamentais) quando em confronto com interesses públicos não constitui desvio de finalidade para a Administração, pois a promoção daqueles também constitui um fim público, conforme restará demonstrado mais à frente

Vale ressaltar que a realização dos direitos individuais pode significar alcançar o interesse público.

A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público, aliada à natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais, e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade, impõe ao legislador e à Administração Pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização.
(...) não se nega a existência de um conceito de interesse público, como conjunto de “interesses gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os satisfaça, através de ação política juridicamente embasada (a dicção do Direito) e através de ação jurídica politicamente fundada (a execução administrativa ou judiciária do Direito”. O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre outros.

Desta forma, percebe-se que apesar de existir o conflito dos direitos coletivo e individual em determinados momentos, de maneira geral eles convergem, visto que o interesse coletivo é, também, a garantia dos direitos individuais.
Na tentativa de evitar o tratamento desigual, o que se sugere e é permitido pelo sistema processual brasileiro é a asseguração dos direitos por meio de demandas coletivas posto que a decisão final reduz a entropia além de deixar claro os parâmetros para correção das políticas publicas.

Em terceiro lugar, e como parece evidente, a decisão eventualmente tomada no âmbito de uma ação coletiva ou de controle abstrato de constitucionalidade produzirá efeitos erga omnes, nos termos definidos pela legislação, preservando a igualdade e universalidade no atendimento da população. Ademais, nessa hipótese, a atuação do Judiciário não tende a provocar o desperdício de recursos públicos, nem a desorganizar a atuação administrativa, mas a permitir o planejamento da atuação estatal. Com efeito, uma decisão judicial única de caráter geral permite que o Poder Público estruture seus serviços de forma mais organizada e eficiente. Do ponto de vista da defesa do Estado em ações judiciais, essa solução igualmente barateia e racionaliza o uso dos recursos humanos e físicos da Procuradoria-Geral do Estado.

Importante destacar também que no entendimento de Daniel Sarmento demandas coletivas “tendem a possibilitar uma instrução processual mais completa, franqueando ao juiz um maior contato com as inúmeras variáveis envolvidas na implementação das políticas públicas de atendimento dos direitos sociais”.
Decisões como estas, geralmente são mais fundamentadas nas provas produzidas e com maior consciência do impacto financeiro gerado para o Estado, pois o magistrado passa a ter uma idéia de quantas pessoas necessitam do tratamento, não ficando na ilusão de que custear o tratamento de uma única pessoa não pode ser pesado no orçamento dos entes estatais.
Vale ressaltar, que em grande parte das vezes que um magistrado se depara com uma ação individual, haverá um pedido de antecipação dos efeitos da tutela, que faz o magistrado, diante da urgência do pedido e da probabilidade do alegado ser verdadeiro, em regra deferi-lo sem que tenha a possibilidade de conhecer mais profundamente a situação. Tal deferimento, ocorrendo sem sequer permitir que a parte contrária se manifeste, dificilmente será alterada, pois não há como reverter a situação a quo, existente antes da entrega do medicamento ou do procedimento médico.
A defesa da propositura de demandas coletivas não visa inviabilizar as demandas individuais, principalmente as que não se enquadram a outros quadros por peculiaridades próprias de determinados casos. O grande problema está na adoção de critérios distintos, de um lado a concessão quase que total nos pedidos das demandas individuais e de outro, cuidado excessivo nas demandas coletivas.
A partir desta consciência, o que se recomenda é a utilização, sempre que possível, não apenas de demandas coletivas, mas de utilização de um paradigma que vise facilitar o julgamento de tais demandas e evitar decisões contraditórias em casos semelhantes. Este, inclusive, é o posicionamento de Daniel Sarmento , que alega que por haver magistrados de diversos níveis de conhecimento, haverá análises mais e menos profundas nos processos, o que trará divergência nas sentenças prolatadas.
Por meio deste tipo de análise a tendência é minimizar as discrepâncias nas sentenças e reduzir ao mínimo o prejuízo causado à coletividade pela concessão de decisões que garantam o direito subjetivo de seu autor a saúde.

3.2 Limitação financeira

O problema do excesso da judicialização de demandas advém de duas fontes: a fática e a jurídica. A fática diz respeito à limitação financeira do país. Supondo-se que o país tem determinada quantia de dinheiro, não é viável, e muito menos possível, imaginar que todo ele será utilizado com remédios ou procedimentos médicos. A Administração Pública tem o dever de fazer com que seu orçamento anual atenda às diversas necessidades básicas dos administrados.
Já o problema jurídico vem das limitações impostas pelo legislador ao se elaborar o orçamento, exigindo que se utilize determinada porcentagem mínima e, às vezes, máxima para cada tipo de despesa, o que impede, por exemplo que todo o dinheiro que previamente seria destinado a construção de escolas seja utilizado para compra de medicamento.
A violação do direito não se encontra somente no “não fazer”, mas na disponibilidade financeira do Estado para proporcionar tais direitos.

Há de se verificar, portanto, no caso concreto, a "razoabilidade da pretensão" e a "disponibilidade financeira" do Estado para a implementação da política publica via controle do STF. Assim, a violação aos direitos mínimos tem de ser evidente e arbitraria, como o desvio do dinheiro para o ensino e saúde do art. 34, VII, "e"; para a construção de uma obra de embelezamento; ou ainda, o veto do Executivo a dispositivo da lei orçamentaria anual que se destine dinheiro do fundo de erradicação da pobreza da extinta CPMF para outra finalidade distinta.

Em caso de atuação excessiva da máquina judicial para garantir tratamentos, há que se lembrar que, por exemplo, ao utilizar verba inicialmente destinada à compra de medicamentos para diabetes para pagamento de uma internação de alto custo, muitas pessoas serão penalizadas, por não receberem o medicamento.

Talvez a crítica mais frequente seja a financeira, formulada sob a denominação de “reserva do possível”. Os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém, da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, seja sociais. Em diversos julgados mais antigos, essa linha de argumentação predominada.
(...)
Mais recentemente, vem se tornando recorrente a objeção de que as decisões judiciais em matéria de medicamentos provocam a desorganização da Administração pública. São comuns, por exemplo, programas de atendimentos integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico. Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de medicamentos, frequentemente o Governo retira o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável. Tais decisões privariam a Administração da capacidade de se planejar, comprometendo a eficiência administrativa no atendimento ao cidadão. Cada uma das decisões pode atender às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas, globalmente, impediria a otimização das possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública.

A partir do conhecimento da reserva do possível, ou seja, o que é razoável se exigir da sociedade, observando-se o orçamento e outros interesses da coletividade, há que se encontrar, também, o outro ponto de vista, o mínimo existencial que nada mais é do que parte integrante do princípio da dignidade da pessoa humana, exigindo a atuação mínima para garantir a vida com um mínimo de dignidade.
A ADPF 45 julgada pelo Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que a sociedade não pode ficar ao arbítrio estatal para que seus direitos possam ser exercidos.

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO "MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).
(...)
Conclui-se, desse modo, que o objetivo perseguido na presente sede processual foi inteiramente alcançado com a edição da Lei nº 10.777, de 24/11/2003, promulgada com a finalidade específica de conferir efetividade à EC 29/2000, concebida para garantir, em bases adequadas - e sempre em benefício da população deste País - recursos financeiros mínimos a serem necessariamente aplicados nas ações e serviços públicos de saúde.
Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar situação de prejudicialidade da presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.
Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO) -, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional

Se o mínimo existencial for alcançado, apesar de não ser o ideal, já se considera garantida uma parcela razoável do direito da sociedade visto que estará sendo prestado um serviço mínimo, ao mesmo tempo, sem ofender as limitações fática e jurídica.
É claro que por outro lado, não é aceitável que se faça o mínimo caso disponha de recursos para uma prestação de nível mais elevado. Conforme dito anteriormente, o princípio da vedação ao retrocesso impede que uma vez que se consiga avançar nos direitos e realizar mais do que o patamar anterior, volte-se a ele. O objetivo sempre será oferecer mais, garantindo gradativamente uma maior completude dos serviços públicos prestados, não sendo mero impedimento a restrição de direitos, mas com foco na ampliação deles.
Devido a essa limitação financeira e orçamentária, para que se possa alcançar um número maior de jurisdicionados com um mínimo de impacto no orçamento público a melhor solução é o magistrado, ao deferir a entrega de medicamentos, sempre dar preferência aos remédios genéricos, pois terão menor impacto financeiro.
Outro fator a ser observado é o deferimento de tratamento que tenha sua eficiência comprovada, sem que se utilize tratamentos experimentais ou alternativos. Tal medida se deve para que não se gaste dinheiro público com algo que possa não resolver, gerando, provavelmente, nova demanda para que se proceda tratamento tradicional.
Por fim, o último ponto é a utilização dos serviços e medicamentos produzidos no país e que sejam indispensáveis para a manutenção da vida. Se não há necessidade de importar medicamentos ou de realizar tratamentos médicos no exterior o custo será drasticamente reduzido já que não haverá gastos com transporte e no pagamento que seria feito em moeda estrangeira, tantas vezes mais valiosa do que a nacional, o que é capaz de aumentar consideravelmente o custo.

3.3 Capacidade técnica do magistrado
O último ponto a ser analisado é a capacidade técnica do magistrado para decidir qual indivíduo será ou não beneficiado por sua decisão de submetê-lo ao tratamento de saúde a expensas do dinheiro público.
De maneira geral, não se espera que um juiz de direito tenha também outras formações, em especial na área da medicina. Assim, pode-se dizer que o magistrado apesar de ser dotado de conhecimento interdisciplinar para que possa julgar com equidade, ou em caso de desconhecimento específico da causa poder se apoiar em um perito de sua confiança, não tem capacidade para decidir qual doente deve ou não ser atendido.

E destaco três pontos, que podem comprometer a capacidade dos juízes para a adoção de uma interpretação ótima da Constituição em determinados contextos, e que deveriam ser levados em conta em qualquer teria prescritiva sobre a hermenêutica constitucional: a sobrecarga de trabalho pelo número excessivo de processos, a falta de conhecimentos técnicos fora do terreno do Direito e a lógica inerente ao processo judicial.

Pode-se ver conforme afirmado que a falta de conhecimento específico é apenas mais um fator indicando a incapacidade técnica do juiz para tais casos. O excesso de trabalho também impede que o magistrado, apesar de todo o desejo de fazer seu melhor, dispense grande quantidade de tempo para analisar adequadamente todos os casos complexos. O outro fator afirmado no texto é que os processos judiciais foram pensados e estruturados em situações bilaterais, ou seja, em que haja duas partes e não multilateral, na qual há diversas partes que sequer se encontram no processo (demais jurisdicionados).
Outro aspecto a ser observado, conforme bem ressalta Barroso é a dificuldade contramajoritária.

Juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. Sua investidura não tem o batismo da vontade popular. Nada obstante isso, quando invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, o Judiciário desempenha um papel que é inequivocamente político. Essa possibilidade de as instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos gera aquilo que em teoria constitucional foi denominado de dificuldade contramajoritária.

Conforme exposto, a dificuldade contramajoritária nada mais é do que um agente não eleito (o magistrado) atuar em uma seara que é estranha a suas atribuições, visto que não fora eleito pelo povo para tomar as decisões politicas, ao contrário dos detentores de mandato eletivo que são legalmente os representantes do povo.
É possível perceber que apesar da teórica separação da política do direito, na prática não é assim que ocorre. O magistrado não é um individuo apolítico e completamente imparcial, alheio a influências externas.

Todo caso difícil pode ter mais de uma solução razoável construída pelo intérprete, e a solução que ele produzirá será, em última análise, aquela que melhor atenda a suas preferências pessoais, sua ideologia ou outros fatores externos, como os de natureza institucional. Ele sempre agirá assim, tenha ou não consciência do que está fazendo.

A doutrina chama de caso difícil os casos nos quais há conflito entre dois ou mais direitos, tendo então que se dar preferência a um sobre o outro ou que na ponderação limite-se ambos para que nenhum dos dois pereça. Barroso entende, também, que muitas vezes a lei não é o fator predominante na decisão judicial, mas a escolha do resultado, observando-se preferências, preconceitos e personalidade do julgador. A partir desta visão, há mais um fator prejudicial para compreender se o magistrado é o indivíduo mais competente para a decisão.
Vale destacar que o administrador público quando de sua atuação age com discricionariedade, escolhendo dentre as possíveis escolhas as decisões que considera convenientes e oportunas. Tais decisões não podem ser analisadas pelo Poder Judiciário no sentido de dizer se foram ou não as mais adequadas. O único juízo cabível neste caso é o controle da legalidade do ato, se foi realizada por meio da forma prevista pela lei e se a finalidade foi o bem público.

No que se refere aos atos discricionários, todavia, é mister distinguir dois aspectos. Podem eles sofrer controle judicial em relação a todos os elementos vinculados, ou seja, aqueles sobre os quais não tem o agente liberdade quanto à decisão a tomar. Assim, se o ato é praticado por agente incompetente; ou com forma diversa da que a lei exige; ou com desvio de finalidade; ou com o objeto dissonante do motivo, etc.
O controle judicial, entretanto, não pode ir ao extremo de admitir que o juiz se substitua ao administrador. Vale dizer: não pode o juiz entrar no terreno que a lei reservou aos agentes da Administração, perquirindo os critérios de conveniência e oportunidade que lhe inspiraram a conduta. A razão é simples: se o juiz se atém ao exame da legalidade dos atos, não poderá questionar critérios que a própria lei defere ao administrador.

Mais uma vez se mostra os limites da atuação do Poder Judiciário, pautando-se pelo descumprimento de alguma norma e não tendo liberdade de exigir meros caprichos por ter uma opinião diferente.
Não é necessário dizer que determinadas doenças são demasiadamente graves, a ponto de levar o paciente à morte caso não iniciado tratamento em momento exato. Por isto há critérios específicos que devem ser adotados, em especial, com base nas regras que os hospitais de tratamento de referência se utilizam para selecionar seus pacientes. Ainda assim, há decisões judiciais contraditórias dentro de um mesmo órgão, como exemplo o ocorrido no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em que uma Turma deferiu pedido de internação no INCA, enquanto outra, para não imiscuir-se em decisão que entendia não ser competente, indeferiu.

CONSTITUCIONAL E ADMINSTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO À SAÚDE. INTERNAÇÃO. INCA RESPEITO À ISONOMIA E À FILA DE ESPERA. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. SUBVERSÃO DA ORDEM ADMINISTRATIVAMENTE ESTABELECIDA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Descabe ao Judiciário estabelecer prioridades de natureza médica. Este não é administrador do SUS e, caso se admitisse a sua intervenção indevida, teria também que resolver os problemas decorrentes de sua atuação, haja vista que se uma pessoa realiza o exame por força de tutela judicial, outra, que teria direito por ordem natural, seria prejudicada. 2. Embora o direito à saúde seja constitucionalmente garantido a todos, cabendo ao Estado, em sentido lato, promovê-lo mediante políticas sociais e econômicas (arts. 6º e 196 da CRFB/88), não se pode prejudicar outras pessoas em igual ou até pior situação, que têm prioridade na fila organizada administrativamente, sob pena de afronta ao princípio da isonomia. 3. É preocupante a atuação do Judiciário, que intervém indevidamente na Administração, sem o devido conhecimento sobre as prioridades, as enfermidades e a urgência de todos aqueles que aguardam ansiosamente a realização do mesmo procedimento cirúrgico. Precedentes. 4. Por outro lado, é inviável, em um quadro insatisfatório, socializar o custeio de internação em rede hospitalar privada. 5. Agravo interno conhecido e desprovido.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. INTERNAÇÃO EM HOSPITAL ESPECIALIZADO EM ONCOLOGIA. INCA. DIREITO À SAÚDE. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. -Trata-se de Agravo de Instrumento, objetivando cassar decisão que deferiu a tutela antecipada para determinar à União que providencie a internação da autora no INCA, a fim de que efetue tratamento oncológico até a alta hospitalar. -É sabido que o SUS - Sistema Único de Saúde - é composto pela União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, havendo entre eles responsabilidade solidária pela prestação dos serviços de saúde, conforme art.23, II, da CF. Neste sentido, temos que qualquer dos entes federativos podem figurar no polo passivo de demandas que objetivam assegurar o acesso à saúde. -Desta forma, correta a r. decisão guerreada, que concedeu a tutela antecipada para determinar a internação da agravada em hospital especializada em Oncologia, uma vez que, sendo esta a única forma de preservar a vida da mesma, é de responsabilidade da União prover-lhe o tratamento necessário para garantir seu direito à saúde e à vida. -Agravo de Instrumento desprovido.

Daniel Sarmento se utiliza de um caso ocorrido na África do Sul em que uma política pública implementada pelo governo não satisfaria adequadamente aos anseios do povo e assim uma decisão judicial, ao invés de dizer o que deveria ser feito, atribuiu a um órgão técnico independente, reconhecidamente competente, a supervisão e elaboração de um novo programa, reportando-se ao tribunal.
Assim, diante das deficiências do Poder Judiciário para tutelar os direitos sociais, deve utilizar-se de mecanismos que permitam maior efetividade, como é o caso do amicus curiae. Esta figura, do amigo da corte, é uma intervenção de terceiros, por parte de entidades que tenham representatividade adequada para se manifestar no caso sobre questão de direito pertinente à controvérsia constitucional. Estas pessoas estranhas ao processo devem apontar fatos ou circunstancias que, normalmente, passariam despercebidas aos olhos de leigos no assunto.
Mais uma vez pode-se ver a incapacidade do juiz para decidir causas sociais de qualquer espécie.

Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Para evitar que o Judiciário se transforme em uma indesejável instância hegemônica, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos. Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico. Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.

Além dos aspectos técnicos, há que se observar que é necessário haver a confiança da sociedade, caso contrário, divergindo drasticamente as decisões do sentimento social, os indivíduos não cumprirão as decisões, como forma de demonstrar sua objeção. Claro que o Poder Judiciário não pode ser algo manipulado pela opinião pública, sob pena de ser um pseudo-Poder.
Contudo a ação do magistrado não pode, sem um sólido fundamento, ser contrário aos anseios da sociedade, conforme dito anteriormente, por não ser um representante legitimamente constituído dela.
Devido a todas essas razões depreende-se que o magistrado não é a pessoa detentora de capacidade técnica para, por si só, decidir a lide. Também não é cabível esquivar-se de julgar as demandas que lhe são apresentadas, devendo fazer uso dos meios adequados, os amigos da corte, peritos e demais meios que estiverem ao seu alcance para julgar com maior equidade possível.
Pode-se então considerar apresentados os diversos problemas da judicialização excessiva, suas origens e motivos, bem como as possíveis soluções para cada caso, para que o magistrado atue de forma a causar menor dano a sociedade como um todo e resolvendo as demandas que lhe são apresentadas. Tais tratamentos proporcionam maior isonomia aos indivíduos que se encontram em situações semelhantes.

CONCLUSÃO

Após todas as observações feitas ao longo do trabalho, todos os questionamentos foram devidamente respondidos. Talvez não de modo plenamente satisfatório, mas por ser um campo ainda pouco explorado pelos grandes pensadores da ciência do direito, pode-se dizer que respondidos de modo a não deixar sem algum tipo de solução.
Assim, tendo a mudança nos axiomas axiológicos como principal razão é possível responder positivamente quanto à possibilidade de atuação do Poder Judiciário garantindo os direitos. Há que se salientar que a atuação deve ser moderada e não pautada pelo ativismo judicial.

(...) a atividade judicial deve guardar parcimônia e, sobretudo, deve procurar respeitar o conjunto de opções legislativas e administrativas formuladas acerca da matéria pelos órgãos institucionais competentes. Em suma: onde não haja lei ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção.

Isto quer dizer que o Poder Judiciário deve limitar sua atuação apenas a casos de omissão dos poderes competentes e não atuar analisando se a decisão tomada pelo administrador público é a mais adequada, julgando assim o mérito e não a legalidade do ato ou de sua omissão.
Outro ponto na manifestação do Poder Judiciário é que este deve atuar:

Quando não estejam em jogo os direitos fundamentais ou a preservação dos procedimentos democráticos, juízes e tribunais devem acatar as escolhas legítimas feitas pelo legislador, assim como ser deferentes com o exercício razoável de discricionariedade pelo administrador, abstendo-se de sobrepor a eles sua própria valoração política. Ademais, a jurisdição constitucional não deve suprimir nem oprimir a voz das ruas, o movimento social e os canais de expressão da sociedade. Nunca é demais lembrar que o poder emana do povo, não dos juízes.

A sugestão dada por Luís Roberto Barroso para o deferimento de tratamentos e medicamentos aos doentes é a limitação por aqueles que têm comprovação científica de sua eficácia, a preferência pelos que são fornecidos no país, a preferência pelo genérico e a indispensabilidade para a manutenção da vida.
Se assim o fizer, o julgador estará atuando com justiça e sua atuação não causará grandes prejuízos aos demais que necessitam de prestações na área da saúde.
Uma atuação pautada nestes limites causará prejuízos mínimos a coletividade pois, não haverá desperdícios desnecessários o que garantirá mais recursos públicos a serem investidos na área da saúde com medicamentos essenciais que normalmente são oferecidos por meio de políticas públicas.
A utilização da tutela coletiva é uma das medidas mais importantes, pois além de garantir um tratamento igualitário para os demais que se encontram na mesma situação, permitirá uma análise mais profunda do caso, não somente conhecendo o custo real do tratamento para o orçamento público, como haverá a imparcialidade por não estar contemplando face a face as angústias e necessidades de uma pessoa.
Também se pôde perceber que não há diferença entre o interesse do indivíduo e o coletivo, sendo ambos complementares, convergentes e constitucionalmente previstos.
Ciente da limitação orçamentária, um magistrado deve tomar por base, na hora de julgar um caso concreto, o princípio do mínimo existencial e o da vedação ao retrocesso, para que o objetivo de fazer mais do que antes seja cumprido, obviamente de forma ponderada.
Por fim, o magistrado não é o indivíduo mais capacitado para decidir quem deva ser alvo de um tratamento / medicamento ou não por não deter conhecimentos técnicos para tal e por suas decisões poderem não ser justas, já que muitas outras pessoas com as mesmas doenças, caso não ajuízem ações, permanecerão por mais tempo ainda em filas de espera para receberem o tratamento adequado.
Conforme já afirmado, há juízes com maior ou menor capacidade para julgar as causas, o que é mais um fator que pode levar a uma decisão cuja análise seja equivocada.
Ressalta-se que ainda não sendo o indivíduo mais adequado para tomar tal decisão não deve se manter inerte em caso de omissão do Poder Público ou ações contra legem, tendo por dever nestes casos agir garantindo o cumprimento da norma constitucional.
A preferência do magistrado deve ser por deferir pedidos feitos em ações nas quais não defina diretamente o modus operandi do poder público, mas delegando a entidades competentes e respeitadas elaboração de planos que alcancem o fim desejado.

REFERÊNCIAS

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BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo. Atualidades Jurídicas (Brasília), v. 11, p. 62-106, 2011
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Decreto-Lei n.° 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da união. Brasília, DF, p. 13635, 09 set., 1942. Seção 1.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009
DEZEN JÚNIOR. Gabriel. Constituição Federal Interpretada. Niterói: Impetus, 2010.
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2006.
SARMENTO, Daniel. Por um Constitucionalismo Inclusivo: História Constitucional Brasileira, Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
VELLOSO, Leandro. PEDRAS, Cristiano Villela. Jurisprudência Sistematizada do STF e STJ. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A Função Social do Poder Familiar, Seu Descumprimento e Sanções

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Desenvolvimento: 2.1 Abordagem Constitucional; 2.2 Diferença do pátrio poder para o poder familiar; 2.3 Responsabilidade de criar e educar ; 2.4 Conseqüências do descumprimento da função social do poder familiar; 2.4.1 Conseqüências civis; 2.4.2 Possibilidade de sanção penal. 3. Considerações finais. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo vem analisar a função social do poder familiar e observar a mudança histórica entre o pátrio poder e o novo poder familiar e suas consequências. É verificável na jurisprudência a impetração de ações que visam à indenização por descumprimento das obrigações paternas vindouras da função social do poder familiar. É de extrema relevância, para o descongestionamento do Poder Judiciário, um posicionamento do mesmo, principalmente das instâncias superiores, quanto à possibilidade de indenização aos descendentes pelo descumprimento dessa função, o cabimento ou não de imposição de sanções penais e as consequências na esfera cível.

A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 229, dispõe que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Da mesma forma, o Código Civil de 2002, em seu art. 1634, dispõe o mesmo previsto na CRFB/88 e ainda dá a competência de exigir respeito e obediência de seus filhos. Da mesma forma que ocorre divergência nos julgados, a doutrina também diverge quanto ao tema no que se refere à possibilidade de indenização e quanto ao que significa a expressão criar e educar previsto no texto constitucional.

A grande maioria das ações impetradas contra os genitores que descumprem sua função social do poder familiar, que tiveram êxito no Poder Judiciário tem como fundamento a violação dos princípios constitucionais da paternidade responsável, dignidade da pessoa humana e da afetividade. Todavia é necessário a comprovação do dano psicológico gerado pela ausência da figura de um dos genitores.

O objetivo precípuo deste estudo é identificar o posicionamento majoritário da doutrina e jurisprudência no que se refere aos temas já apresentados e identificar as tendências na indenização da vítima do abandono. Para discutir tais aspectos, deve-se utilizar de pesquisa bibliográfica, descritivo-explicativa tanto em material virtual, artigos disponíveis na internet, quanto em livros por ser a forma mais rápida e eficaz de descobrir o pensamento dos doutrinadores e profissionais das diversas áreas do direito.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 ABORDAGEM CONSTITUCIONAL

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve um fenômeno chamado de constitucionalização do direito civil, visto que na última Carta Magna, o constituinte aprofundou mais o tratamento dado a esta parte do direito, não sendo mais tratado de forma superficial, mas direcionando mais precisamente determinados temas que considerou relevante.

Assim, a Constituição Federal consagra alguns princípios que devem ser considerados ao analisar o tema em questão. Estes princípios são o da paternidade responsável, o da afetividade, o do melhor interesse da criança e o da dignidade humana.

O primeiro princípio tem por finalidade a responsabilização dos genitores pelos filhos gerados, sendo esta responsabilidade tanto de criar e educar como de responder civilmente por eventuais danos causados por estes. O segundo revela a afetividade que deve haver entre pai e filho, já que o poder familiar não é composto por um elo preponderantemente jurídico ou moral, mas de natureza sentimental, afetiva, de forma que suas ações têm nesta sua maior motivação. O terceiro visa conhecer e levar em consideração os anseios desejos e necessidades dos filhos menores. Por fim, o último princípio e mais abrangente, é o que gera o dever mútuo de respeito entre o genitor e o filho, o direito do filho de ter no seu nome o sobrenome do pai, entre outros mais.

Com relação a este tema, deve-se observar o princípio da dignidade humana principalmente pelo ponto de vista do filho, já que é este o mais prejudicado por possíveis ações de seus genitores.

O princípio da paternidade responsável foi incluído no Estatuto da Criança e do Adolescente, ao dispor que o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.

A partir de então, o direito da criança ou do adolescente ao reconhecimento do seu estado de filho, que antes da Constituição Federal era impedido em algumas situações pelo Código Civil, passou a ser absoluto.

O princípio da paternidade responsável, além do aspecto de planejamento familiar, se manifesta no dever do pai assumir de forma integral o seu papel, e o fato gerador dessa obrigação pode ser tanto a fecundação, em se tratando de paternidade biológica, quanto à perfilhação socioafetiva.

Este princípio está inserido no direito do estado de filiação, e é previsto implicitamente na Constituição Federal, no art. 227, pois é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar, colocando-os a salvo de toda forma de discriminação, vedando expressamente as designações discriminatórias relativas ao estado de filiação.

O princípio do melhor interesse da criança não consta expressamente no texto constitucional, todavia é considerado de suma importância para se solucionar casos judiciais por exemplo. As crianças e adolescentes são considerados sujeitos ativos do seu próprio destino e devem ser ouvidos sempre que possível a respeito de assuntos que possam vir a afetá-los. Este princípio foi reconhecido na Convenção Internacional de Haia e também no Novo Código Civil em dois de seus artigos, de maneira implícita.

O primeiro dispositivo é o art. 1.583 do Código Civil, dispõe que no caso de dissolução do vínculo conjugal pela separação judicial por consentimento mútuo ou pelo divórcio direto consensual, o que decidirem os cônjuges sobre a guarda dos filhos será observado. Há um Enunciado do Conselho da Justiça Federal, número 101, que decide que a expressão guarda de filhos constante do dispositivo deve ser aplicado tanto para a guarda unilateral quanto a compartilhada, sempre atendido o melhor interesse da criança. Em caso de não concordarem os cônjuges, a guarda deverá ser dada àquele que revelar melhores condições para exercê-la, conforme art. 1.584 do NCC. O aplicado do direito tem uma lacuna deixada pelo legislador para ser resolvida pelo aplicador do direito com base no caso concreto.

Mesmo não constando a palavra afeto na Carta Maior como um direito fundamental, podemos dizer que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana. O princípio da afetividade tem maior relação com o vínculo de afeto do que com vínculo biológico. Assim, surge uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho.

A defesa da aplicação da paternidade socioafetiva, hoje, é muito comum entre os atuais doutrinadores do Direito de Família. De maneira que o Conselho da Justiça Federal sob o reconhecimento do Superior Tribunal de Justiça, aprovou o Enunciado 103, que reconhece, no art. 1.593 do CC, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente de técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente a qualquer dos pais que não contribuiu com seu material fecundante fundada na posse do estado de filho.

2.2 DIFERENÇA ENTRE O PÁTRIO PODER E O PODER FAMILIAR

Os poderes conferidos pelo pátrio poder mudaram com o decorrer do tempo. Para o direito romano, este tinha um caráter absoluto, no qual o pai, que era o chefe de família, tinha o poder de vida e morte dos filhos. Posteriormente, os poderes outorgados a este chefe foram sendo restringidos, não mais podendo expor o filho, matá-lo ou entregá-lo como indenização.

Segundo o entendimento de alguns, a influência do cristianismo fez com que o poder familiar constituísse um conjunto de deveres, interessando ao Estado assegurar a proteção das novas gerações.

Carlos Roberto Gonçalves entende que a expressão “pátrio poder” tem íntima relação com o poder, enquanto que “poder familiar” tem em vista o exercício da função legitima fundada no interesse de outro indivíduo e não em coação física ou psíquica, proveniente do poder.

Segundo Paulo Nader, o pátrio poder era exercido tão somente pelo marido, e apenas em sua falta ou impedimento a mulher assumia o exercício. Afirma também que “a titularidade do marido não retirava a autoridade da mulher no lar, pois cumpria-lhe zelar pela criação e educação dos filhos” , e o poder do marido apenas prevalecia em caso de divergência na condução de interesses dos filhos.

Somente com o advento da Constituição Federal de 1988 que se concretizou a igualdade plena quanto à titularidade e exercício do poder familiar, visto que no Estatuto da Mulher Casada, a Lei 4.121/62, apesar de conferir a ambos genitores o poder, prevalecia a vontade do marido, exceto em caso que recorrido ao juiz, este desse ganho de causa a mulher.

O poder familiar não se encontra vinculado ao casamento, podendo haver na união estável ou até mesmo sem ter ocorrido qualquer tipo de vínculo entre os pais, desde que reconhecida a paternidade pelo genitor. Esta responsabilidade decorre da filiação.

Apenas no caso de separação judicial, divórcio e dissolução de união estável há pequena alteração no poder familiar, visto que um dos genitores terá a guarda do filho, assegurando ao outro o direito de visitar e fiscalizar a manutenção e educação dada pelo primeiro.

2.3 RESPONSABILIDADE DE CRIAR E EDUCAR

Recentemente tem sido reconhecida pelos juristas uma interpretação distinta da que vinha sendo admitida durante muitos anos no que se refere ao conceito de “criar e educar” que é não apenas responsabilizar-se pelo pagamento das necessidades básicas dos filhos. Esta nova hermenêutica tem por base dois princípios constitucionais: o da paternidade responsável e o da afetividade.

O primeiro se funda na responsabilidade da procriação por serem os responsáveis pela vida biológica dos filhos. Esta responsabilidade, como apontado pela doutrina, é irrenunciável, não permitindo aos pais se desonerarem de quaisquer de seus deveres . Vale ressaltar que esta responsabilidade não se sujeita à ingerência de particulares, da sociedade ou do Estado. Este último tem apenas função fiscalizatória não-ostensiva e a punição dos titulares do poder quando descumprirem seu dever.

O segundo princípio tem por base o elo que envolve o poder familiar não ser preponderantemente moral ou jurídico, mas de natureza afetiva, sentimental. Sendo neste último que se encontra a maior motivação para as ações inerentes ao poder familiar.

Segundo Paulo Nader, “criar não é apenas oferecer recursos materiais, mas essencialmente é atenção, carinho, dialogo” . O mesmo autor compreende que a lei natural ensinada aos homens os levam a dar proteção, carinho e assistência aos filhos menores por causa do sentimento de amor que liga a prole aos genitores.

Com fulcro na sentença do magistrado de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul, Mario Romano Maggioni, “A educação abrange (...) convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a presença do pai ajude no desenvolvimento da criança.”

A autoridade dos pais tem como atribuições primárias cuidar do desenvolvimento físico e mental assim como assistir moralmente e preparar intelectualmente. Assim quando o menor adquirir a maioridade terá recebido formação do caráter e cultura, além do cuidado com sua vida, tendo, portanto, condições de participar na vida social com base em suas habilidades.

“Os pais educam não apenas quando dirigem observações, comentários aos filhos, mas principalmente quando se apresentam como um modelo pessoal de vida, seja pela seriedade, lhaneza no trato, responsabilidade no trabalho, equilíbrio emocional. ” A educação pode ser percebida quando o educando absorve os ensinamentos que o leva a ter bons hábitos. Esta deve motivar a auto-estima e estimular o desenvolvimento do potencial de cada filho para que possa superar suas dificuldades. O dever de educar também tem relação a proporcionar ensino regular em escola compatível com o nível social dos pais. No caso dos filhos forem portadores de alguma deficiência o dever de educar muitas vezes implica na colocação em estabelecimento especial.

No processo de criação os filhos devem tomar determinadas decisões que lhes dizem respeito a medida que demonstrem amadurecimento e responsabilidade, visto que isto colabora para o desenvolvimento de sua personalidade. Isto exige acompanhamento de perto dos genitores, conhecimento de suas necessidades e de sua evolução.

Um ponto importante a ser considerado é que como os filhos devem respeito e obediência aos pais, pode-se afirmar que a estes, detentores de poder familiar, cabe o dever de cobrar tais condutas dos filhos menores. Visto que educar é impor limites e induzir a formação de bons hábitos, os pais que não exigem respeito e obediência de seus filhos violam deveres inerentes ao exercício do poder familiar.

Todavia, há entendimento doutrinário contrário no que se refere a alguns pontos, entendendo que cabe aos pais a vigilância e a manutenção do espaço onde a educação se desenvolve. Todavia não é necessário que haja afeto, não havendo relação entre amor e dever, pois se o amor e o aprendizado se fundissem, o Ministério Público seria parte legítima para requerer a indenização, visto que haveria lesão concreta ao princípio legal previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Há entendimento por parte de alguns julgadores que o Poder Judiciário não tem como responsabilidade condenar alguém a pagar indenização por desamor .

Este entendimento Cabe aos pais a vigilância e a manutenção do espaço onde a educação se desenvolve. Para que isso seja feito, não há necessidade de afeto. Amor e dever não se misturam. Se o amor e o aprendizado se fundissem, o Ministério Público seria parte legítima para requerer a indenização, pois haveria lesão concreta ao princípio legal previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Outro ponto que esta corrente diverge é o que diz respeito ao dever de companhia. O entendimento quanto ao artigo 1589 do CC é que há a faculdade de visitar a criança e não um dever de fazer-se presente. Alega ao afirmar isto que ao considerar como indispensável a presença de ambos genitores na vida do menor há quase que uma volta ao pátrio poder, podendo a criança viver normalmente, de forma saudável, sob a guarda de apenas um genitor, sem prejuízo de seu desenvolvimento.

Também afirma que se cumular a destituição do poder familiar com a indenização, pode-se criar um problema mais grave, já que muitos pais por causa de temor a condenação por danos morais, e não por amor, passariam a exigir o direito de participar ativamente da vida do filho. Estes exigiriam a convivência, mesmo que não sendo, por exemplo, bom pai, tendo que a mãe, zelosa, partilhar a guarda com alguém que notoriamente não possui qualquer afeto pela criança. A condição de amor obrigado pela lei poderia ser pior que a ausência. Isto geraria uma nova figura jurídica, o abandono do pai presente, por não ser necessária a distância para que fique caracterizada a falta de interesse afetivo.

Neste caso, sendo constatada a nocividade da presença do pai, a mãe poderia exigir judicialmente o seu afastamento, sendo então impedido de exercer a guarda do filho, ficando livre da obrigação por meio da sentença. Não havendo assim a possibilidade de exigir qualquer indenização pelo desprezo paterno. Desta feita, a potencialidade de ser prejudicial ao menor, por meio de sua presença, pode ser uma tese para defender a ausência dos pais, sujeitos à única condenação possível: a destituição da guarda, já aplicada a situações da mesma espécie, imputando ao requerente a complicada comprovação do abandono. Nessa ótica, casos de indenização por abandono, o magistrado apenas transformaria a dor do menor por falta de cuidado e a alegação de falta de amor do genitor em pagamento de valores.

Vale ressaltar que esta corrente entende que o afeto não decorre do vínculo genético. Assim, somente há chance de sucesso uma aproximação entre pai e filho que seja realmente desejada por ambos. A relação afetuosa deve ser fruto de aproximação espontânea, cultivada reciprocamente, e não de força judicial.

2.4 AS CONSEQUÊNCIAS DO DESCUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DO PODER FAMILIAR

2.4.1 Consequências Civis

Quando ocorre o descumprimento da função social do poder familiar é possível, segundo o Código Civil, haver dois tipos de conseqüências: a suspensão e a extinção do poder familiar. A principal intenção ao aplicar estas sanções é a de preservar o interesse do menor e não punir os pais, sendo possível perceber isto com a devolução do poder familiar ao genitor que o teve retirado.

A suspensão é aplicada nas hipóteses do artigo 1.637 do CC, que são: descumprimento dos deveres inerentes aos genitores, causar a ruína dos bens dos filhos e condenação em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão.

Pode-se entender como descumprimento dos deveres inerentes ao genitores: permitir que o filho fique em estado de criminalidade, vadiagem, libertinagem e mendicidade; incitar ou propiciar esses estados ou concorrer para perversão; infligir ao menor maus-tratos privando-o de alimentos ou cuidados; faltar aos deveres paternos por abuso de autoridade, incapacidade, negligência, ou impossibilidade de exercer o pátrio poder; empregar o menor em ocupação proibida, ou contrária à moral ou aos bons costumes; expor a risco a vida, a saúde ou a moralidade da criança. Suspenso o poder, perde o pai todos os direitos em relação ao filho, inclusive o usufruto de seus bens.

No que se refere a atentar contra a vida do menor, seja física ou moralmente, não é necessário que ocorra reiteradamente, bastando que ocorra apenas uma única vez para a aplicação da sanção.

Com relação à suspensão do poder familiar em virtude de condenação criminal por sentença irrecorrível é possível julgamento antecipado da lide, conforme já decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Vale ressaltar que a suspensão é temporária, apesar de não ter um limite de tempo, sendo válida apenas durante o período necessário, arbitrado pelo magistrado, para cessar a causa que a motivou. Esta sanção pode ser revogada a qualquer tempo. Importante registrar que pode suspender totalmente os poderes ou parcialmente, como, por exemplo, à administração dos bens. Pode ocorrer a suspensão unicamente a determinado filho, permanecendo sua autoridade para com outro.

A extinção do poder familiar nem sempre será uma pena, visto que esta pode ocorrer por fato natural ou por ato voluntário. No primeiro caso ocorreria em caso do falecimento dos pais ou do filho, por ato voluntário, que se dá com a entrega do filho para adoção. Esta pena, também chamada de perda ou destituição, assim como a anterior, deve ser decretada por decisão judicial.

As hipóteses previstas no Código Civil que causam a perda do poder familiar estão elencadas no artigo 1.638. Por causa do entendimento de que os pais são exemplos para os filhos, e estes reproduzirão estes modelos durante sua vida, a prática de atos atentatórios contra a moral e aos bons costumes coloca em risco a formação adequada dos filhos sendo motivo para a perda da autoridade parental.

Em caso de castigo físico imoderado ao menor, da mesma forma que na sanção de suspensão, segundo o entendimento de alguns , não é necessária a reiteração da conduta para que ocorra a perda do poder familiar. “A imposição do aludido castigo configura, pois, abuso da autoridade paterna, que autoriza o juiz a suspender temporariamente o poder familiar. A reiteração pode levar a sua destituição.”

Deixar o filho em situação de abandono também configura a possibilidade de aplicação desta sanção. Uma vez que o abandono priva o menor do direito de conviver com a família e a comunidade. Este abandono pode ser entendido como material, moral ou intelectual que configuram hipóteses de crime previstos na legislação.

A reiteração de condutas que implicam na suspensão, também é motivo para a destituição do poder familiar. Com base na análise do magistrado, casos de abuso de autoridade, imposição de sacrifícios aos filhos, causando-lhes constrangimento, pode gerar a suspensão ou até mesmo a perda do poder familiar, ainda que seja por vedar formas mais simples de lazer aos filhos ou imposição de tarefas além de suas capacidades, por gerar risco de desenvolver uma personalidade que dificulte a adaptação psicológica à diversidade de ambientes e circunstâncias.

Vale ressaltar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 437, parágrafo único, prevê como possível a aplicação da extinção do poder familiar aos pais que permitirem o trabalho de menor em locais que sejam nocivos a sua saúde ou que atentem contra a sua moral.

Atualmente se tem visto, no poder judiciário, a possibilidade de uma terceira conseqüência para o descumprimento, a indenização ao filho que se sente rejeitado. Todavia, esta é uma opção que gera grande divergência, visto que há os que concordam com o pagamento da indenização e os que são contrários.

O grupo que se posiciona de forma contrária ao pagamento da indenização alega que o dever de reparar passaria a ser mero prêmio de consolação, deixando de ser uma classe extraordinária da valorização aos danos reais e relevantes. Ressalta, também que após a lide, uma barreira intransponível os afastaria ainda mais, praticamente impedindo qualquer tentativa futura de reconciliação. Se a solução para o problema fosse o dinheiro, a reparação se daria por meio da pensão alimentícia. O alargamento exacerbado da possibilidade de indenizar poderia desvalorizar a ciência jurídica, tornando-a simples mercantilismo.

O Poder Judiciário, no que se refere às relações familiares, semente tem que apreciar a defesa aos direitos fundamentais do menor. Qualquer intromissão em questões relacionadas ao sentimento seria abusiva, perigosa e põe em risco relações que não são de sua competência. O amor não é proveniente de coação, mas de algo alheio ao entendimento. Já a corrente que entende ser cabível a indenização, como é o caso do juiz Luiz Fernando Cirillo, se posiciona em uma sentença prolatada que “a par da ofensa à integridade física (e psíquica) decorrente de um crescimento desprovido do afeto paterno, o abandono afetivo se apresenta também como ofensa à dignidade da pessoa humana, bem jurídico que a indenização do dano moral se destina a tutelar”.

Este magistrado ainda compreende que não é o simples fato de os pais estarem separados e portanto não terem a mesma convivência com o filho que gera o direito de indenização por danos morais. Outro extremo seria negar a existência de dano moral se o genitor, possui condições materiais e intelectuais, e ainda assim se abstém completamente de estabelecer relacionamento afetivo ou de convivência, ainda que mínimo, com seu filho, como se não houvesse um vínculo de parentesco, que no âmbito jurídico se expressa também como companhia, transcendendo, assim, a dimensão estritamente material.

Neste caso da sentença do magistrado citado há a constatação de conflitos, na autora, tendo por fator precípuo a rejeição do pai, já que este não demonstra afeto por ela e nem sequer interesse pelo seu estado emocional, focando sua relação com esta apenas na dimensão financeira, a ponto de considerar normal ter se esquecido da filha. Como não teve possibilidade de conviver com uma figura paterna que se relacionasse com ela de forma completa, defrontada com a situação de ser formalmente filha do réu ao mesmo tempo em que tentava vivenciar uma relação de pai e filha com o segundo marido de sua mãe. Seu referencial familiar se caracterizou por comportamentos incoerentes e ambíguos, disso resultando angústia, tristeza e carência afetiva, que atrapalharam seu desenvolvimento profissional e relacionamento social.

Em casos como este, grande parte dos julgados tem acolhido o pedido de indenização de dano moral, todavia, antes é necessária a comprovação, por meio de perícia psicológica, do dano gerado na criança. Conforme Paulo Nader “os pais que se limitam à assistência material, simplesmente pagando alimentos aos filhos, poder ser acusados de abandono emocional e se sujeitarem à responsabilidade civil pelo descumprimento de seu dever e por causarem danos morais irreversíveis.” Para tanto é necessário que se apresentem alguns elementos que são: o nexo de causa e efeito entre ambos, o dano moral, o abandono emocional e o elemento culpa.

Esta corrente entende que a indenização pelo abandono afetivo tem função reparatória e pedagógica. O STF ainda não se manifestou sobre a possibilidade da indenização, todavia, se o disser que não há nenhuma sanção às regras e aos princípios jurídicos de que os pais são responsáveis pela criação e educação de seus filhos, este órgão instalaria e endossaria a irresponsabilidade paterna. A importância político-social e a repercussão geral estão na veiculação direta e reflexa da tragédia social de milhares de crianças abandonadas e dos vários sintomas desse abandono.

Esses sintomas não se resumem a mera consequência da falta de políticas públicas adequadas, estando diretamente relacionados ao abandono paterno, por causa da falta do exercício das funções paternas. A reparação civil ou a indenização tem a função de contemplar aquilo que não se pode obrigar. Negar o direito da reparação civil pelo abandono afetivo é o mesmo que retirar a responsabilidade dos pais pela criação e educação de seus filhos.

2.4.2 Possibilidade de Sanção Penal

Para Paulo Nader, é plenamente possível a aplicação de sanções penais em caso de descumprimento da função social do poder familiar. Para tanto, é necessário que haja o descumprimento de forma clara e, dependendo da sanção, de repetição da omissão.

Há a possibilidade de enquadrar as condutas dos genitores em diversos artigos do Código Penal Brasileiro. Ao não proporcionar, pelo menos, a educação primária aos filhos, fica caracterizado o crime de abandono intelectual, capitulado no artigo 246 do Código Penal. Este dever, segundo Carlos Roberto Gonçalves , não se limita a instruir os filhos, mas deve ser compreendido de forma ampla, instruindo moral, política, profissional e civicamente.

O abandono material, previsto no artigo 244 da legislação penal, é o crime que comete o genitor que não provê o sustento de sua prole, todavia, isto não causa a perda do poder familiar, e ainda que ocorra esta perda, não é motivo que libere o genitor faltoso de cumprir com sua responsabilidade, caso contrário seria este beneficiado e o outro cônjuge teria que arcar com todas as despesas sozinho. Vale ressaltar que este crime somente é cometido se for sem justa causa.

Ao entregar o filho à pessoa que possa expor a criança, moral ou materialmente, a perigo, está se cometendo o crime tipificado no artigo 245 do CP. Neste caso, o que a lei tenta impedir é que o menor que ainda tem sua personalidade em formação seja influenciado negativamente ao observar o comportamento deste indivíduo de moral duvidosa e deseje ser como ele. Da mesma forma tem-se a intenção de prevenir que alguém coloque a integridade física ou a vida do menor em risco. Para que este crime seja consumado basta que o genitor saiba do perigo que o filho corre ao ficar em companhia desta pessoa, não necessitando que haja perigo concreto.

Apesar de mostrarem-se contrários, os doutrinadores convergem na possibilidade dos pais castigarem os filhos por meio de punição física, desde que de forma moderada, sob pena de cometer o crime de maus-tratos do artigo 136 do diploma penal. Este crime ainda é causa de perda do poder familiar. Vale ressaltar que este crime pode ser desclassificado para lesão corporal, por exemplo, caso a intenção do ofensor não seja educar, podendo ser compreendido de diversas formas, como, por exemplo, punir por meio de privação de alimentos durante período de tempo suficiente para que possa causar perigo para a vida ou a saúde da vitima; ou privar de cuidados indispensáveis; ou sujeitar a trabalhos excessivos, como uma criança realizar determinada tarefa por tempo longo demais ou trabalho inadequado para sua qualidade.

É possível registrar um crime que pode ser cometido contra os filhos, todavia, também pode ser praticado por terceiros. Para que se configure o crime do artigo 133 basta a exposição do menor a perigo, visto que ao ser tipificado não há dolo de dano, caso contrário, responderá o agente garantidor pelo crime de homicídio, por exemplo. Este é um crime de perigo concreto, sob pena de ficar provada a atipicidade do fato. Há três elementos que caracterizam este delito: o ato de abandonar, o incapaz estar sob guarda, vigilância ou cuidado do agente e ser incapaz de defender-se dos riscos produzidos com o abandono. Esta incapacidade pode ser relativa ou absoluta, durável ou temporária.

No artigo 134, há o delito de abandono de recém-nascido. Apesar de semelhante à infração penal anterior, aprouve ao legislador acrescentar esta em separado. A grande diferença do crime do artigo anterior é que este tem a finalidade de ocultar a desonra própria, com seu comportamento. O recém-nascido, segundo a doutrina, é aquele que nasceu a poucas horas ou dias, não se concebendo a possibilidade de ter alguns meses de vida. O crime é praticado para que não haja mácula em sua honra. Este delito quase não mais é praticado, visto que foi reduzida significativamente a discriminação, por exemplo, de uma mãe solteira.

Por fim, o último crime passível de comissão pelo genitor é o de abandono moral, previsto no artigo 247 do CP, que tem suas semelhanças com o de entregar o filho para pessoa que possa oferecer perigo, todavia neste caso a diferença é que se leva a criança para local que a exponha moralmente.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após apresentados pensamentos de diversos doutrinadores, pode-se dizer que com o decorrer da história, houve alterações, primeiramente, na mentalidade da sociedade e conseqüentemente a posteriori na legislação que levaram a transformar o pátrio poder, em poder familiar, em parte, esvaziando-o de direitos e acrescentando deveres a serem cumpridos. Todas as alterações que ocorreram têm em vista alguns princípios que foram sendo reconhecidos ao longo do tempo, como é o caso da igualdade, que igualou direitos e deveres de ambos os cônjuges com relação à educação do menor, ou a paternidade responsável que gerou deveres de se responsabilizar o genitor pela educação visando a integridade física, moral, intelectual do menor.

Assim é possível afirmar sem dúvida que o pátrio poder não é exatamente o mesmo que poder familiar, tendo ocorrido apenas mudança nominal, mas tem conteúdos distintos, e grandes alterações principiológicas, principalmente se levar em consideração o pátrio poder no direito romano.

Com relação à responsabilidade de criar e educar não é passível afirmar categoricamente o que a expressão significa, visto que a compreensão da doutrina diverge. Até que o Supremo Tribunal Federal se manifeste, não haverá um entendimento que prevalecerá, visto que as fundamentações de ambas correntes têm suas falhas e seus pontos fortes. Contudo, analisando a expressão a partir do princípio da paternidade responsável a corrente doutrinária com fundamento mais sólido é a que compreende que ambos os genitores devem fazer-se presentes na vida do filho, já que foram concorrentemente responsáveis pela geração da vida dele.

Fundamentos baseados na não afetividade do genitor pelo filho não devem ser tidos como mais importantes. A dignidade da pessoa humana tem base no amor ao próximo e isto deve ser entendido como ter consideração, respeito, observar a necessidade do outro. Isto aplicado ao caso em questão pode ser visto como o genitor respeitar o filho e desejar o melhor para ele, visto que seus laços não são meramente jurídicos, mas consangüíneos e morais. Da mesma forma que a corrente contratual que compreende que o ser humano, nos primórdios, convencionou pelo respeito pelo outro, pela privação de determinados direitos, para viver junto em comunidade deve-se absorver esta lição para que haja o convívio do genitor com o menor, ainda que ele alegue não haver afeto para com a pessoa do filho.

Conforme verificado são cabíveis dois tipos de sanção civil para o descumprimento da função social do poder familiar, segundo o Código Civil, que são estas a suspensão e a destituição do poder familiar. Há também a divergência quanto à terceira sanção, a indenização. O entendimento da corrente favorável a indenização é o mais adequado. Apesar de poder haver a possibilidade de banalização e riscos ao transformar o não convívio familiar em pagamento de valores, a intenção é plenamente justa, já que visa à responsabilização dos genitores pela participação na vida do menor por terem o gerado.

A própria Constituição Federal confere o dever do planejamento familiar ao indivíduo, isto implica na responsabilidade dos atos, já que um filho pode ser gerado dentro de um casamento, uma união estável ou até mesmo de uma relação sexual sem qualquer tipo de envolvimento entre as duas pessoas.

Já foi afirmada a possibilidade de aplicação de sanções de natureza penal ao genitor que se descuida de suas responsabilidades para com o menor. A única divergência restante, quanto ao tema, seria a leitura correta a ser feita do disposto nos artigos da legislação penal. Como afirmado, em alguns casos criminalistas entendem o abandono intelectual meramente como impedir o filho a estudar e os civilistas enxergam de forma mais ampla, a instrução de valores para a vida como um todo.

Por fim, não há como afirmar qual o posicionamento majoritário da doutrina e jurisprudência com relação a todos assuntos abordados, visto que trata-se de novidade no campo jurídico e poucos autores e judicantes manifestaram-se explicitamente sobre eles, ou ainda, não havia o reconhecimento da necessidade de abordar os temas aqui tratados, havendo pouca literatura relevante para o acumulo do conhecimento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Artigo Científico Jurídico apresentado como exigência final da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso à Universidade Estácio de Sá – Curso de Direito.